Existe uma conexão entre o que sonhamos e a vida real? Especialistas explicam essa relação e revelam como ela provoca pesadelos, sonhos lúcidos e sonambulismo

Sonhos e Vida Real

Será que existe alguma relação entre os sonhos e a vida real? Por que temos pesadelos e o que eles querem nos dizer sobre nossa vida cotidiana? Como nossa vida em vigília interfere na qualidade do sono e em fenômenos como a paralisia do sono, os sonhos lúcidos e o sonambulismo? Para a psicóloga do sono Dra. Silvia Conway, os sonhos refletem o que está se processando na dimensão emocional e cognitiva da vida real. “Temos que entender a vida como um contínuo, ela não é fragmentada entre sono e vigília. Ao dormir, expressamos como lidamos com as questões do dia”, esclarece a especialista. 

Do ponto de vista da neurobiologia, alguns estudos investigaram a atividade neural por meio da encefalografia em pessoas nos diferentes estados de consciência – vigília, sono sem sonhos e sono com sonhos. “Os estudos mapeiam o nível de ativação dos neurônios na experiência do sonho e mostram que há uma diferença entre este nível e os demais estados de consciência. Além disso, o padrão de excitação cortical tem relação com o conteúdo dos sonhos e se assemelha com a atividade neural que detectamos na vigília”, revela a Dra. Paula Araujo, especialista em medicina e biologia do sono. Isso revela que os sonhos não são “invenções” criadas pela pessoa quando ela está acordada, são estados de experiências conscientes, que revelam percepções e pensamentos enquanto dormimos, mesmo estando desconectados do ambiente externo.

Pesadelos 

Se há uma relação entre o que sonhamos e o que nos acontece na vida real, o que podemos extrair disso? Analisar os sonhos ajuda a pessoa a estar em contato com processamentos internos, cognitivos e emocionais, que auxiliam na organização da vida interna. Por exemplo, se uma pessoa está vivendo uma situação de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), um dos sintomas é ter pesadelos associados ao evento que ela vivenciou. Em alguns casos, a pessoa sonha repetidas vezes com o mesmo conteúdo angustiante, com pequenas variações, e isso reflete a angústia que ela pode estar sentindo e que não consegue dissolver dentro dela. 

“Quando recorrentes, os pesadelos podem desencadear estresse excessivo, ansiedade, sonolência diurna e fadiga”, explica a Dra. Paula Araujo. Porém, isso não é necessariamente um aspecto negativo, pois o pesadelo é um sintoma de algo que está deixando a pessoa angustiada ou estressada no estado de vigília. É um alerta que pode dar a oportunidade para acessar esse desconforto que a pessoa está vivendo e tentar solucioná-lo ou buscar ajuda terapêutica para superar aquela situação. 

Paralisia do sono 

A paralisia do sono é um estado de dissociação da atividade cerebral, acontece quando o cérebro “acorda” e a pessoa tem consciência de que está acordada, mas não consegue se mexer. Ela é explicada fisiologicamente devido a um breve atraso na ativação dos sistemas centrais que controlam a musculatura e costuma durar apenas alguns segundos, embora pareça durar minutos para a pessoa que está vivenciando a situação por conta da angústia e ansiedade que ela sente nesse estado. 

Ter um ou poucos episódios de paralisia do sono ao longo da vida é comum, mas se eles são frequentes recomenda-se consultar um médico do sono para uma investigação mais cuidadosa, pois este evento pode estar associado à narcolepsia – quando o indivíduo tem uma condição neurológica crônica e sente sonolência excessiva, chegando a adormecer em vários momentos do dia –, ao uso de medicamentos ou substâncias e ao desenvolvimento de ansiedade e medo na hora de dormir. 

Alguns estudos mostram que a paralisia do sono é mais frequente em pessoas que vivenciaram algum trauma ou situação de estresse pós-traumática. A privação de sono também é outro fator gerador da paralisia do sono. Trabalhadores em turnos, por exemplo, acabam tendo mais episódios de paralisia do sono justamente por essa irregularidade provocada no horário de dormir. 

“Quando a pessoa vivenciar um momento de paralisia ela pode tentar mexer as extremidades do corpo inicialmente, ou mesmo os olhos, de um lado para o outro. Isso ajuda a sair desse estado”, revela a Dra. Silvia Conway. 

Sonambulismo 

No sonambulismo há uma mistura de estados de consciência da vigília e do sono Não-REM (NREM), em que geralmente há uma menor frequência de relato de sonhos. É como se houvesse um despertar incompleto, em que uma parte do cérebro acorda enquanto outras partes estão no sono NREM. Por isso há atividade motora elevada, que pode levar ao ato de caminhar ou manipular objetos, mas com baixa ou nenhuma atividade cognitiva, o que explica a ausência de memória dos eventos durante esse período. Por representar um risco para a pessoa, que pode sofrer quedas, cortes e acidentes quando em estado sonambúlico, o sonambulismo é considerado um distúrbio do sono.

O sonambulismo em crianças acontece devido a uma imaturidade do sistema nervoso central, mas quando elas crescem a tendência é haver uma diminuição desses episódios. Se eles persistirem na adolescência ou na fase adulta estão associados ao estresse. Pessoas que só manifestam o sonambulismo na fase adulta têm um gene favorável a esse distúrbio, especialmente em situação de angústia ou estresse na vida real. 

Em geral, a pessoa com sonambulismo fica muito cansada ao final do período de sono pois é um sono agitado do ponto de vista eletroencefalográfico. “Usar medicamentos pode amenizar os sintomas, mas não trata a causa do problema, portanto a psicoterapia é altamente recomendável para pessoas q u e  t e n h a m  e s s e  d i s t ú r b i o , a l é m  d e cuidados com a higiene do sono para garantir quantidade e qualidade adequadas de sono”, indica a Dra. Silvia Conway.

Sonhos Lúcidos 

Você é capaz de ter sonhos em que sabe que está sonhando e até controla o rumo do sonho? Saiba que isso é relativamente comum, pois 75% dos brasileiros já tiveram pelo menos um sonho lúcido na vida. Apesar de comum, não é um tipo de sonho recorrente para a maioria da população. “No meu doutorado, mais de 3.500 pessoas responderam a uma pesquisa por meio de questionário online e esse estudo mostrou que uma minoria tem sonhos lúcidos recorrentes, que acontecem quase todos os dias ou uma vez por semana”, revela o Dr. Sérgio Arthuro, médico e neurocientista, especialista em sono. 

No entanto, pessoas que têm sonhos lúcidos recorrentes relatam não descansar bem após a noite de sono. Como o sonho lúcido acontece na fase REM, o indivíduo tem pouco sono profundo. Esse efeito colateral adverso é o que faz com que estas pessoas não considerem os sonhos lúcidos uma experiência boa, diferente dos que têm esse tipo de sonho de forma rara. Para esses, 95% gostam da experiência, principalmente porque podem controlar o que acontece nos sonhos e realizar coisas prazerosas, como encontrar um parente que já morreu, ou mesmo voar. 

Não existe ainda uma característica física ou mental que explique o porquê de uma pessoa vivenciar uma experiência de sonho lúcido, mas alguns fatores influenciam favoravelmente a experiência. A pesquisa do Dr. Arthuro revelou que, ao dormir sem hora para acordar, as pessoas têm mais sono REM, o que aumenta a probabilidade de vivenciar sonhos lúcidos. Outro fator de incremento dos episódios é a meditação, onde a atenção e o foco de autoconsciência são tocados , da mesma forma que acontece na experiência de sonho lúcido.

 Existem ainda técnicas para induzir o sonho lúcido. Uma delas é acordar em torno de meia hora ou uma hora antes do horário normal de despertar – o que vai tirar a pessoa do sono REM – e voltar a tentar dormir, concentrando se no sonho mais recente de que se lembra. “Apesar de ser uma experiência prazerosa está havendo uma alteração da arquitetura normal do sono, ou seja, ao invés de dormir a noite toda, o indivíduo interrompe o sono para viver a experiência, por isso o uso dessa técnica é questionável ”, alerta o Dr. Arthuro, a não ser quando usada para tratamento clínico. 

Pessoas que têm pesadelos recorrentes ligados a um trauma repetem a vivência da experiência continuamente, sem saber que ela não é real. Isso consolida ainda mais o trauma. Nestes casos, induzir o sonho lúcido tem um efeito terapêutico, pois desta forma a pessoa consegue perceber que o pesadelo não é real e até controlar o rumo de forma favorável a ela, ajudando a reviver a situação sem medo.

Sono e Autoconhecimento 

Existem pessoas que não têm sonhos? A resposta é não. O que acontece é que alguns lembram dos sonhos que tiveram e outros não. “Lembrar-se dos sonhos não tem a ver com a quantidade de horas que a pessoa dorme, mas se ela valoriza sonhar, gosta de ficar no silêncio e observar a si mesma, cria espaços para compreender como um fato externo a afeta antes de agir. Estas pessoas são as que se lembram mais dos sonhos”, revela a Dra. Conway. 

O hábito de acordar e permitir um despertar lento do estado de sono para a vigília também aumenta a capacidade de recordar os sonhos. É uma oportunidade de observarse na relação com o conteúdo onírico antes de estar em vigília completa. Nas grandes metrópoles, em que a maioria das pessoas já acorda com o despertador tocando no limite de levantar-se da cama e começar as atividades do dia, esse processo de conexão com os sonhos recentes não acontece. 

Os sonhos trazem informações importantes do espaço interno das pessoas. “Não se lembrar dos sonhos é um desperdício, pois esse conteúdo mostra mais de si mesmo, de como você está encarando a vida, o que é difícil para você. É algo que pode ser usado para ampliar seu autoconhecimento”, recomenda a Dra. Conway. 

Como podemos notar, estudos revelam que há uma relação direta entre qualidade de vida e sonhos. Pessoas que têm uma vida mais equilibrada dormem melhor e os sonhos costumam ser mais leves e reveladores. 

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Texto de autoria de Mônica Miglio Pedrosa

Fonte: Publicado oficialmente na Revista Sono – Uma publicação da Associação Brasileira do Sono – Edição 27 (Julho, agosto, setembro 2021)

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