Nestes tempos “pandêmicos”, graças à redundante virulência de um novo vírus, a vida das pessoas em todo o planeta mudou radicalmente. Ademais, isto tornou os problemas com o sono cada vez mais corriqueiros ou, se preferirem, altamente prevalentes no rol das consequências nefastas para a saúde física e mental dos viventes. Mas, isto também não é mais novidade para ninguém, vale a rima. Novidade mesmo, seria a disseminação epidêmica de uma insônia, como foi magistralmente descrita por Gabriel Garcia Márquez em “Cem anos de solidão”, considerada “a grande metáfora da América Latina”.
Como sabemos, nesta obra-prima, Gabo relata, ao longo de um século, a história de Macondo, o icônico povoado fundado por José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, através de suas guerras, desastres e tragédias. A crônica do absurdo está retratada por situações inusitadas, como a temporada de quatro anos de chuvas torrenciais e perenes que se abate sobre Macondo. Mas o clímax é alcançado com a epidemia de insônia que atinge rapidamente a todos os moradores.
O casal Buendía inicialmente não se preocupa com o fato até que, dias depois, quando se deitam para dormir, sem nenhum sono, percebem que já estavam acordados há mais de cinquenta horas. Acometidos pelo mal, em vez de dormir passavam o dia inteiro sonhando acordados, num estado de “alucinada lucidez” que os fazia não Francisco Hora é especialista em Pneumologia e Medicina do Sono (Associação Médica Brasileira), Doutor em Medicina (Universidade Federal de São Paulo) e Professor Associado IV da FAMEB (Universidade Federal da Bahia). apenas ver as imagens dos próprios sonhos, mas aquelas sonhadas pelos outros “contaminados”.
A quarentena tardia revelou-se um antídoto inefetivo. Mas, logo “… chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir”. Curiosamente, não era a incapacidade de dormir que os incomodava, uma vez que não sentiam nenhum cansaço, mas sim a perda da memória. Este esquecimento brutal também foi assim descrito pelo autor: “… quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida, o nome e a noção das coisas e, por último, a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado”.
A “peste da insônia”, em Macondo, finda-se também de modo abrupto quando o cigano Melquíades retorna ao povoado e oferece a José Arcadio Buendía uma “substância de cor suave”, que atuando como milagroso antídoto para a insônia, liberta a todos da avassaladora epidemia. Quem sabe não estejamos todos nós, neste momento, já fazendo por merecer a visita do cigano Melquíades e sua poção mágica?!
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Francisco Hora é especialista em Pneumologia e Medicina do Sono (Associação Médica Brasileira), Doutor em Medicina (Universidade Federal de São Paulo) e Professor Associado IV da FAMEB (Universidade Federal da Bahia).
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Fonte: Revista Sono
UMA PUBLICAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO SONO
EDIÇÃO 22
ABRIL | MAIO | JUNHO 2020